No curso das elucidações domésticas, Judas conversava, entusiástico, sobre as anomalias na governança do povo, e, exaltado, dizia das probabilidades de revolução em Jerusalém, quando o Senhor comentou, muito calmo: — Um rei antigo era considerado cruel pelo povo de sua pátria, a tal ponto que o principal dos profetas do reino foi convidado a chefiar uma rebelião de grande alcance, que o arrancasse do Trono.
O profeta não acreditou, de início, nas denúncias populares, mas a multidão insistia. “O rei era duro de coração, era mau senhor, perseguia, usurpava e flagelava os vassalos em todas as direções” — clamava-se desabridamente.
Foi assim que o condutor de boa-fé se inflamou, igualmente, e aceitou a ideia de uma revolução por único remédio natural e, por isso, articulou-a em silêncio, com algumas centenas de companheiros decididos e corajosos. Na véspera do cometimento, contudo, como possuía segura confiança em Deus, subiu ao topo dum monte e rogou a assistência divina com tamanho fervor que um Anjo das Alturas lhe foi enviado para confabulação de espírito a espírito.
À frente do emissário sublime, o profeta acusou o soberano, asseverando quanto sabia de oitiva e suplicando aprovação celeste ao plano de revolta renovadora.
O mensageiro anotou-lhe a sinceridade, escutou-o com paciência e esclareceu: — “Em nome do Supremo Senhor, o projeto ficará aprovado, com uma condição. Conviverás com o rei, durante cem dias consecutivos, em seu próprio palácio, na posição de servo humilde e fiel, e, findo esse tempo, se a tua consciência perseverar no mesmo propósito, então lhe destruirás
o trono, com o nosso apoio.”
O chefe honesto aceitou a proposta e cumpriu a determinação.
Simples e sincero, dirigiu-se à casa real, onde sempre havia acesso aos trabalhos de limpeza e situou-se na função de apagado servidor; no entanto, tão logo se colocou a serviço do monarca, reparou que ele nunca dispunha de tempo para as menores obrigações alusivas ao gosto de viver. Levantava-se rodeado de conselheiros e ministros impertinentes, era atormentado por centenas de reclamações de hora em hora. Na qualidade de pai, era privado da ternura dos filhos; na condição de esposo, vivia distante da companheira. Além disso, era obrigado, frequentemente, a perder o equilíbrio da saúde física, em vista de banquetes e cerimônias, excessivamente repetidos, nos quais era compelido a ouvir toda a sorte de mentiras da boca de súditos bajuladores e ingratos. Nunca dormia, nem se alimentava em horas certas e, onde estivesse, era constrangido a vigiar as próprias palavras, sendo vedada ao seu espírito qualquer expressão mais demorada de vida que não fosse o artifício a sufocar-lhe o coração.
O orientador da massa popular reconheceu que o imperante mais se assemelhava a um escravo, duramente condenado a servir sem repouso, em plena solidão espiritual, porquanto o rei não gozava nem mesmo a facilidade de cultivar a comunhão com Deus, por intermédio da prece comum.
Findo o prazo estabelecido, o profeta, radicalmente transformado, regressou ao monte
para atender ao compromisso assumido, e, notando que o Anjo lhe aparecia, no curso das orações, implorou-lhe misericórdia para o rei, de quem ele agora se compadecia sinceramente. Em seguida, congregou o povo e notificou a todos os companheiros de ideal que o soberano era, talvez, o homem mais torturado em todo o reino e que, ao invés da suspirada insubmissão, competia-lhes, a cada um, maior entendimento e mais trabalho construtivo, no lugar que lhes era próprio dentro do país, a fim de que o monarca, de si mesmo tão escravizado e tão desditoso, pudesse cumprir sem desastres a elevada missão de que fora investido.
E, assim, a rebeldia foi convertida em compreensão e serviço.
Judas, desapontado, parecia ensaiar alguma ponderação irreverente, mas o Mestre Divino antecipou-se a ele, falando, incisivo: — A revolução é sempre o engano trágico daqueles que desejam arrebatar a outrem o cetro do governo. Quando cada servidor entende o dever que lhe cabe no plano da vida, não há disposição para a indisciplina, nem tempo para a insubmissão.
O BURRO DE CARGA - ALVORADA CRISTÃ – FCX
No tempo em que não havia automóveis, na cocheira de famoso palácio real um burro de carga curtia imensa amargura, em vista das pilhérias e remoques dos companheiros de apartamento.
Reparando-lhe o pêlo maltratado, as fundas cicatrizes do lombo e a cabeça tristonha e humilde, aproximou-se formoso cavalo árabe, que se fizera detentor de muitos prêmios, e disse, orgulhoso: — Triste sina a que recebeste! Não invejas minha posição nas corridas? Sou acariciado por mãos de princesas e elogiado pela palavra dos reis!
— Pudera! exclamou um potro de fina origem inglesa — como conseguirá um burro entender o brilho das apostas e o gosto da caça?
O infortunado animal recebia os sarcasmos, resignadamente.
Outro soberbo cavalo, de procedência húngara, entrou no assunto e comentou:
— Há dez anos, quando me ausentei de pastagem vizinha, vi este miserável sofrendo rudemente nas mãos de bruto amansador. É tão covarde que não chegava a reagir, nem mesmo com um coice. Não nasceu senão para carga e pancadas. É vergonhoso suportar-lhe a companhia.
Nisto, admirável jumento espanhol acercou-se do grupo, e acentuou sem piedade: — Lastimo reconhecer neste burro um parente próximo. É animal desonrado, fraco, inútil... Não sabe viver senão sob pesadas disciplinas. Ignora o aprumo da dignidade pessoal e desconhece o amor próprio. Aceito os deveres que me competem até o justo limite; mas, se me constrangem a ultrapassar as obrigações, recuso-me à obediência, pinoteio e sou capaz de matar.
As observações insultuosas não haviam terminado, quando o rei penetrou o recinto, em companhia do chefe das cavalariças.
— Preciso de um animal para serviço de grande responsabilidade — informou o monarca —, animal dócil e educado, que mereça absoluta confiança.
O empregado perguntou: — Não prefere o árabe, Majestade?
Não, não — falou o soberano — é muito altivo e só serve para corridas em festejos oficiais sem maior importância.
— Não quer o potro inglês?
— De modo algum. É muito irrequieto e não vai além das extravagâncias da caça.
— Não deseja o húngaro?
— Não, não. É bravio, sem qualquer educação. É apenas um pastor de rebanho.
— O jumento serviria? — insistiu o servidor atencioso.
— De maneira nenhuma. É manhoso e não merece confiança.
Decorridos alguns instantes de silêncio, o soberano indagou:
— Onde está o meu burro de carga?
O chefe das cocheiras indicou-o, entre os demais. O próprio rei puxou-o carinhosamente para fora, mandou ajaezá-lo com as armas resplandecentes de sua Casa e confiou-lhe o filho, ainda criança, para longa viagem.
Assim também acontece na vida. Em todas as ocasiões, temos sempre grande número de amigos, de conhecidos e companheiros, mas somente nos prestam serviços de utilidade real aqueles que já aprenderam a suportar, servir e sofrer, sem cogitar de si mesmos.
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